Não tá morto quem peleia (1977/1978)

Nos anos 70, com máxima disposição, escavamos lembranças de aspectos da vida cotidiana, em nossa região e adjacências. Aspectos e lembranças que, em intensidades distintas, estavam inscritas na memória de três gerações. De início, para nós – um pouco mais que recordações de infância, que ainda respingavam nos albores de nossa juventude. Para nossos avós e pais  – vida vivida que latejava em sorrisos, saudades e emoções escorridas em discretas lágrimas. Não era para menos: pois que, cantorias, danças, versos, músicas ritmos e instrumentos empunhados, carreavam vidas, paixões e desassossegos. Diziam mundos nos quais, emoções, palavras, mãos, sons, instrumentos e corpos vibravam, amorosamente entrelaçados. Como esquecer as demoradas horas de reencontro como uma de nossas primeiras professoras que, com seu bandolim nos introduzia à beleza inefável do mundo das musas da música que com ela, em dias festivos subiam, aos palcos da escola ou do Cine Roma, no centrinho de Tapes. Quanto ânimo nas Cantorias dos Ternos de Reis com nossos pais, mestres, cantores e familiares que, desde nossas  infâncias acompanhávamos, em encantadas cenas das estreladas e mornas noites de cantorias entre o Natal e o dia 06 de Janeiro. Gaita ponto, tambor de pele de cabra, estribo e pandeiro. Ternos com versos recitados noite à dentro, caso o prestígio dos músicos e  de seu mestre, estimulasse, os donos da casa, por “judiaria e alegria”, estenderem, por horas sem prazo, a cantoria. Anos de anotações, escutas e gravações de relatos de testemunhas da arte dos compositores que designamos como Grupo da Vila de Dores de Camaquã. Relatos feitos, em verso, canto e bandolim, por Dona Célia Barcelos Cidade e Dona Maria Cunha Koller. Informações que, inspiraram releituras que fizemos para Dores de Camaquã (valsa para bandolim), Marcha do Emboaba. Hino para time de futebol local e para o Terno de Reis da Vila, Letra e  música autoral da família Montenegro Barbosa. Um pouco antes disso, 1972-1974, Rafael Koller e Waldir Garcia, registraram, para violão e bandoneon, versões de xote, vaneira e bugio de autorias anônimas executadas nas bailantas locais. Em meados dos anos 70, Acy, Waldir e eu, animados pelas oportunidades de contatos que a condição de docentes de escolas rurais nos oferecia com pessoas que viviam em distritos de Barão do Trinfo, Dores de Camaquã e de Sertão Santana e Barão do Triunfo, registramos  informações musicais, literárias  relevantes  para o Projeto Não tá Morto Quem Peleia. Além das composições do Grupo da Vila, em Sertão Santana, região de expressiva imigração europeia no século 19, registramos o Dobrado 50 Anos: obra criada pelo Maestro para celebrar os cinquenta anos da Banda que dirigia. Nas planícies costeiras das margens leste e oeste da Lagoa dos Patos e, em nas regiões de coxilhas próximas desta última margem, ouvimos depoimentos musicais e, também registramos imagens e sons de pássaros e de animais presentes no cotidiano das pessoas que viviam nestas regiões. O impacto do entrelaçamento de vozes, sons, imagens, silêncios, risos, surpresas e emoções desencadeadas nas nove sessões realizadas no Teatro de Câmara em Porto Alegre, uniu grupo, representados/presentes na cena e público. Abraçados na evidência de que, algo do que nos constituía, continuava vivo nas experiências que ouvimos falar, ou que testemunhamos em palavras, versos, melodias e cantos. Um círculo que começara com a emoção e surpresa de nossos entrevistados, logo engastadas em nossa pulsante e inquieta disposição de escutá-los, sem prazo de horas. Interesse em tudo que nos aproximava, nas planuras costeiras de lavouras de arroz de Tapes, nos estreitos e curvos caminhos da Serra do Erval, nas demoradas conversas em casas no “oco da serra” como diziam nossos anfitriões e, também, em “nossa casa” nas longas tertúlias no CEART. Encontros assentados, no caso,  em palavras, instrumentos e vozes carregadas de lembranças vividas. Por fim e por começo: Não tá Morto quem Peleia acresce em seus motivos, vitalidade e emoção, quando, por mediação do pesquisador Norton Correia, a partir da voz sussurrada, vibrante e segura de uma senhora descendente de escravos, acolhida, por nossos espíritos inquietos, nos transportou e nos uniu, com seus versos às Cantigas de Quicumbi em Rio Pardo: cerimonial de comunhão e de percepção de ditos e não ditos sobre dolorida e brava resistência aos jugos da escravidão. Também, por mediação do Norton, acolhemos batidas de tambores e as vigorosas palavras e melodias advindas do centenário Maçambique de Morro Alto, Osório RGS.

🔈 Áudios já catalogados de apresentações ao vivo de Não tá morto quem peleia, serão disponibilizados à medida que sejam processados.

Letras

Bugio
(Domínio Público) – Recolhida e adaptada p/ Os Tapes

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Vaneira
(Domínio Público) – Recolhida e adaptada p/ Os Tapes

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Dores de Camaquã
Arlindo do Carmo (Grupo da Vila – Vide Não Tá Morto)

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Cantigas do Quicumbi
Domínio Público – Recolhido por Norton F. Corrêa (Rio Pardo/RS) adaptada p/ Os Tapes

Ó virge da Conceição
Sarabuê, sarabuê, sarabuá
Oi abre a roda meus dançantes
Oi óia o ronca da puíta
Arripinica o tambor mor
Oi óia aquele que tá oiando
Ele é o fio do rei
Um viva prá nosso rei
Também prá nossa rainha

Bem te vi de rosa
Sua benção me bote
É do pai é do fio, meu sinhô
É do espriti santi

Ô caiela, senhora chamô
Pergunte à caiela se a guerra já chegô

Deus te salve
Esta casa santa
Senhora dona, rainha dos anjos
O senhora, doce vizinha
Senhora dona, rainha dos anjos

Canana-nuê, chora, chora
canana-nuê, já chorô
Nhê!

Sarabuê, sarabuá
Oi abre a roda meus dançantes
Oi óia o ronco da puíta
Arripinica o tambor-mor
Oi aquele que tá oiando
Ele é fio do rei
Um viva pro nosso rei
E também prá nossa rainha

Esta casa cheira, cheira a cravo e rosa
Esta casa cheira, meu sinhô
A flor de laranjeira

Trovas
Domínio Público – Recolhido e adaptado p/ Os Tapes

O meu pai é um caco véio
Minha mãe caca Maria
Rolando por tantos cacos
Sou filho da cacaria

O meu pai é um preto véio
Tocador de marimbau
Minha mãe é uma coruja
Mora num oco dum pau

Açucena quando nasce
Arrebenta pelo pé
Hai de arrebentar a língua
De quem fala o que não é

Noite escura me conhece
Tem razão de conhecer
Tem me visto muitas vezes
Meu penar e padecer

Vamos parar por aqui
Antes que nos mande alguém
O que é demais aborrece
E o pouco parece bem

Terno de Reis de Tapes
(Domínio Público) – Recolhida e adaptada p/ Os Tapes

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Cantigas do Maçambique
Domínio Público – Recolhido por Norton F. Corrêa – Adaptado p/ Os Tapes

Marcha São Bento, São Bento marcha
Marcha São Bento
Ê… Marchô! Marchô! Marchô!
Com sua infantaria e o rosário de Maria

Oi capitão da bandeira saia para fora
Com sua ordenança e vamos embora

Oi que rua tão compridá
Toda cheia de pedrinhá
Tenho medo de cair lá
É o rosário de Mariá

Nossa senhora nos mandou recado
Que nos fosse cantado Bendito louvado
O Bendito louvado de Santa Custódia
Oi rainha dos anjos estrela da glória

Minha virgem senhora mande acarmá o vento
Minha virgem senhora mande acarmá o vento
Que lá vai o rosário senhor por esta porta
Que lá vai o rosário senhor por esta porta

Oi nossa rainha saia pra fora
Com sua ordenança e vamo-nos embora

Oia lá manco, manco pisa devagá
Coro oi pisa devagá
Lá na porta do céu tu não vai trupicá

Nossa senhora acorda Mariá
Nossa senhora acorda Mariana
Oi para os instrumentos quicumbi real

O nosso rei congo pisa devagá
Que a rainha ginga não pode avoar
Ai vamo-nos embora e não fica ninguém
Que a virgem do Rosário vai com nós também
Oi anda vossa porta que vai vai Jesus
Aí com os braços abertos cravados na cruz

A canoa virou lá no tombo do mar
Deixa virá – deixa virá
E porque deixaste a canoa virá
Oi de boca pra baixo e de fundo pro ar
Tu quebraste os remos tu tem que pagá
Óia mamãezinha sinhô como está
Eu ti dei uma camisa e tornei a tirá

Ô samba Jesus
Ô sambo Jesus
óia o lado de cá
Oi vamo na praia apanha caranguejo
Caranguejo não é peixe
Caranguejo peixe é
Sambô Jesus
Óia lado de lá
Olê olá olê olá
Ô sambo Jesus
Óia lado de cá
Ô sambo Jesus
É de matirindá

Eu quero ver menina

Sacristão me abre a porta da capela
Eu quero rezar uma oração

Tá croado e bem croado nosso grande imperador
Tá com croa na cabeça, croa de nosso senhor

Ói lá vem o festeiro do dia
Com sua infantaria e o Rosário de Maria

Eu vou mimbora eu quero dar a dispedida
Eu quero voltar outra vez.

Marcha do Emboaba
Correia da Cunha (Grupo da Vila – Vide Não Tá Morto)

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Serrote e Rancheira
Domínio Público. Recolhida e adaptado p/ Os Tapes

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Trinta anos
João Prass e Jorge Raab

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Chote Inglês
(Domínio Público) – Recolhida e adaptada p/ Os Tapes

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Mazurca
(Domínio Público) – Recolhida e adaptada p/ Os Tapes

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Terno de Reis da Vila
João Gonçalves Montenegro

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Milonga
(Domínio Público) – Recolhida e adaptada p/ Os Tapes

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