Vida, Cisma e Canto de um Farrapo (Outubro – Dezembro de 1971)

Composta no 2º semestre de 1971, escolhida, apresentada e premiada hors-concours na 1ª California da Canção Nativa de Uruguaiana no mês de dezembro de 1971. Duração de aproximados 25 minutos. Esta obra se perfaz por recitação e três movimentos musicais com trechos de solos e vocalizações para duas ou três vozes. Nela um Farrapo, de “pura imaginação” evoca, devaneia e recita motivos de participar da guerra ao lado de protagonistas que conheceu ou ouviu falar antes, durante e após o fim das lutas. Enfatiza crenças e razões de ter “largado”, ainda que provisoriamente, “seu mundo”: família, vizinhos, compadres, patrões, lida, alguns animais no campo e festejos e danças de vez em quando:  um modo de viver, no qual tudo estava bem e deveria permanecer como sempre foi! Assim entedia, eram as coisas do mundo, desde tempos que suas lembranças alcançavam, que seus olhos e ouvidos viram e ouviram na campanha e nas coxilhas em que viveu distante de terras, cerros, rios e lagoas por onde a guerra se espalhara. Ensimesmado em seu peculiar código de ética e noção de liberdade, que julgava serem os mais ajustados ao mundo, imagina ou repete falas ouvidas sobre demandas e negociações econômicas e políticas que moviam os protagonistas da guerra e seu encerramento.  Da prosa e versos perplexos e enigmáticos deste Farrapo, transcritos por mim, em longa noite de outubro de 1971, nasce a primeira obra compartilhada por três dos fundadores do Grupo Os Tapes. Claudio Boeira Garcia (texto, composição, vocal) José Cláudio Leite Machado (composição, violão e voz) e Waldir Souza Garcia (violão, composição, voz e recitação, Ordelino Silva (percussão). Para nossa surpresa, a inscrição foi aceita e, na noite de apresentação – ao mesmo tempo em que os organizadores justificaram porque estava sendo apresentada e retirada, por óbvio do concurso – foi agraciada com Distinção Especial pela Comissão Organização e Jurados do Festival. No mesmo ato recebemos o convite para apresentá-la na cerimônia de premiação e de encerramento da 1ª Califórnia da Canção Nativa no dia 19 de dezembro 1971. Na noite de encerramento, das mãos de Paixão Cortes e ao lado Henrique de Freitas Lima, recebemos uma Calhandra em cujo verso se lê:  Prêmio EspecialAo Conjunto Os Tapes – pelos novos rumos que abre no trato do tema nativo riograndense. 1ª Califórnia da Canção Nativa. Uruguaiana Dezembro de 1971. Ordem Dos Músicos, secção do RGS.

🔈 Áudios já catalogados de apresentações ao vivo de Vida, Cisma e Canto de um Farrapo, serão disponibilizados à medida que sejam processados.

Os Tapes OMB – Da esq. p/ dir.: Paixão Cortes, Rafael Koller, José Waldir Garcia, Claudio Boeira Garcia e José Cláudio Machado, na Ordem dos Músicos do Brasil, 1972.

Letra

Vida, Cisma e Canto de um Farrapo
Claudio Boeira Garcia, José Cláudio Leite Machado e Waldir Souza Garcia

… O que eu sei, eu sei. O que não sei, amanhã virá. Do que fiz, não me arrependo. Hay tempo para tudo: pelear, cantar, dançar e chorar… De menino, vi peleia, frangote participei. Da vida aprendi aprendendo, e hoje tenho comigo: destino é o povo que faz! Sei que homem não é como gado, sei sim, que só morre quem não sabe porque tropeia, lavra, planta e peleia. Viver é bom, mas se o destino aparenta ruindade, largo tudo, prenda, terra e gado. Afio lança, encilho pingo, nado rio, salto montanha, cruzo mato, arrisco tudo, se o pampa se clareia e a ruindade se afastou, volto pro meu pago. Curo as feridas, afago a prenda, abraço o filho, a planta cresce e o gado engorda.
Nas minhas andanças guerrilheiras das quatro pontas do pago, muitos gaúchos conheci, e uns e outros que pensavam em voz alta pra todo o pampa, o que eu só sei dizer pra mim: Ah, campos de Vacaria, encontro de tropas de Bento e João Antônio e Canabarro. Muitas vezes, cavalgando de entrevero a entrevero, eu cismava olhando o céu estrelado, e numa mistura de saudades da querência com a alegria de estar peleando, ria baixinho para mim mesmo, dizendo dos chefes: o palavrear não é o mesmo, mas o pensar… tá parelho.
Um dia, me lembro bem… Corria o ano de 38, Amaral, farrapo de instrução, leu um palavrear para o povo todo e para quem quisesse ouvir o que o povo pensava.
Lhes garanto que era verdade, os imperiais não queriam o bem da província. Na assembleia há poucos anos criada, os representantes de São Pedro discutiam. Bento, do povo deputado, com outros foi acusado de tramar com Lavalleja, Gaucho Bueno de muita coragem e fama, a guerra contra o império.
Os do Rio Grande se apartaram nas discussões… uns diziam que tudo se resolve.
Basta correr dos campos do Rio Grande o tal de Fernandes Braga, o intriguento irmão Pedro Chaves acolherados com o chefe das armas.
Feito isso, colocado no governo homem do nosso agrado e respeitador dos nossos interesses. Dito e feito, das Pedras Brancas, Bento dirige e a 19 de setembro, a capital já era nossa.
Com Braga corrido para Rio Grande, o povo em todo o pago festeja e diz: “Agora tudo melhora!” Os impostos e as taxas vão baixar, gado e campos estragados nas lutas do Prata se arrumam. Os produtos do pampa serão vendidos a preço justo, já ouço a gaita e a viola. Vai haver fandango grosso. Os imperiais vão compreender que a província quer respeito.
Nada feito!
Bem razão tinham os que achavam que remendo não servia. E que bem já era hora de despedaçar a canga imperial. Era preciso galopear adiante. Ou o império muda, ou São Pedro mais uma vez afia as lanças e se defende. Bento Araújo, deputado geral dos pagos que o povo representava nas bandas do Rio de Janeiro, foi escolhido para novo governador. Prá Porto Alegre não veio, ficou lá no Rio Grande, onde o governo assume, desprezando a assembleia da capital, e o povo representado. A trama logo é entendida e o povo grita: Dois governos para o Rio Grande é demais! Agora o povo mostra quem é gado e quem é gente.

Canto Primeiro

Se a honra vale mais que a vida
Por ela estarei peleando
Se o pago de São Pedro precisa
Por ele estarei lutando.
Por gosto sou confederado
Empunho o sabre e a lança
E de entreveiro a entreveiro
A canga do império balança
Peleio não por prazer
Mas por motivos sem conta
Pois pago não é tapera
Nem gado que se reponta.
A vida tem rastro certo
Pro gaúcho galopear
E tenho por pensamento
A prepotência esporear
Espero chegar a vitória
O jugo dos pagos findar
Ao som da gaita e viola
De novo com a prenda dançar.
Lá vai o gaúcho guapo
De novo o zaino encilhar.

O novo chefe das armas, Bento Manoel, que nas armas respeito, mas no pensar escangalho, se passa pros imperiais, mas chefe pro povo tem miles, já aí está Lima & Silva comandando as armas confederadas. Depois dos entreveros de outubro em Arroio Grande, a peleia se espalha por todo o pampa. Se uma batalha e a prisão de alguns chefes, decidisse a derrota do povo, já de início os imperiais teriam ganho a guerra. Pois que em boa e planejada armadilha, a marinha imperial, e as tropas de Bento Manoel enredam a valorosa e importante tropa farrapa.

Canto Dois

No barulho da tropilha
Solta macega e poeira do chão
A bagualada carrega tropa
Pras bandas sul do rincão
Notícias de Antônio Neto
Retumbam como um trovão
Rio Grande já é República
Do império a separação
Ato de grande importância
Por todo o pampa falado
Bento galopa pra lá
O cerco é levantado
Mas astuto Bento Manoel
E a imperial esquadrilha
Tropa e Bento enredam
Em infernal armadilha
Chora de sangue Guaíba
O cerco é mais apertado
Resistem os Farroupilhas
Há morte pra todo lado
Três dias de brava luta
De boca acordo é firmado
Larguem de armas os Farrapos
Ninguém será aprisionado
O trato não é cumprido
Bento e chefes aprisionados
Levados para o Rio
Das plagas e povo afastados
Enganam-se os imperiais
A luta não vai terminar
Maneia-se um guapo do povo
Mas sobra ideal pra lutar
Do Rio para a Bahia
Como bandido tratado
Pra liberdade há um preço
Alguém tem que ser cobrado
Fuga e perseguição
Nos pagos está novamente
Afago, churrasco e cantiga
Voltou nosso presidente.

A derrota e prisão de tão importante chefe, não abateu o ânimo do povo da província, e a peleia se espalhou mais dura ainda por toda a São Pedro, a vantagem foi de légua pros federais, se o sangue de São Pedro, fosse o único preço capaz de resgatar a honra e respeito de nossas prendas, filhos, campos e gado, ele seria pago, e correria em rios e só deixaria de correr quando a canga da exploração e desrespeito fosse atirada longe.
Aconteceu assim, o pampa se defendeu e sentiu de canto a canto, o tremor dos combates.
A tática farrapa, consistia em atacar dispersamente o inimigo em diversos lugares. A cavalaria era praticamente a única arma que se movia com a rapidez de um raio, na sua frente espalhava a resistência por toda a província, gaúchos que o Rio Grande jamais iria esquecer, ali na frente do combate estão: Antônio Neto, Bento Gonçalves, Pedro Soares, Lucas de Oliveira, Gomes Jardim, Onofre Pires, Tito Zambecari, David Canabarro, Lima & Silva, Antunes da Porciúncula, Antônio da Silveira, e miles de outros que tombaram ou que viveram para orgulho e liberdade dos pagos em que nasceram, e o grande Garibaldi, que liberdade por pátria escolheu, muito esclarece Bento, na prisão do Rio de Janeiro, é ele que organiza a marinha, arma estranha para a província, mas de grande valia.
Não há canto de São Pedro, que não estremeça com os cascos da cavalhada e não ensurdeça com o tinir das lanças em luta, de boca em boca, de ouvido a ouvido, se espalha a procissão de lugares e combates: combate do Arroio Grande, Faxinal do Viamão, Mostardas, Arroio dos Ratos, Lagoa Cajubá, Seival, Fanfa, Rio Pardo, Fragata, Caçapava, Espinilho, Triunfo, Dores do Camaquã, Petim, São José do Norte, Poncho Verde. A peleia continua dura, passa dia, mês e ano sem que haja entendimento entre os imperiais e os republicanos do Piratini. No pampa, as condições de luta, endureciam cada vez mais, o armamento que vinha das bandas da Argentina e Uruguai era dificultoso e pouco, deixando o povo quase sem armas. O frio e o inverno dos pagos, açoitava as tropas sem agasalho, e até pelego cru teve que servir de abrigo contra o minuano. Nos campos, gado e plantação devastados, e de longe em longe, o choro das viúvas e órfãos. Mesmo com toda esta praga de males, o coração de cada republicano gritava: Altaneiro! Ou se trata com respeito e justiça o Rio Grande, ou ele combate até que o sangue do último farrapo corra no campo de luta. E o império sentiu que era preciso mudar, e outro Lima e Silva, sobrinho do bravo farrapo no campo de luta caído, entende que só com justeza e diplomacia se começaria a pensar em paz. E a paz foi feita, nos campos do Poncho Verde, o império se compromete a respeitar as exigências do pago. E volta ao império não submisso, mas de igual para igual, do Brasil na verdade nunca quis definitivo afastamento.

Canto Terceiro

A paz voltou pra São Pedro
E o convívio com a nação
Lima e Silva, o intermediário
Da reconciliação

Do povo será o governo
A opressão terminará
Campos serão replantados
E a alegria voltará

Nove anos de luta
Pensamento tenho tirado
Desrespeito é bagual xucro
Que deve ser domado

Tudo por que se lutou
O império respeitará
Com mate, churrasco e fandango
O pago festejará

A vida é uma carreira
Ninguém deve andar maneado
Para correr há Pampa para todos
Ninguém galopeia enredado

É preciso que se cante
Mesmo se o pampa escurece
Gaúcho cante e dance sempre
Depois da noite, amanhece

O sabre e a lança afiados no galpão estão jogados
E o Brasil de ponta a ponta já está pacificado
Que o sangue derramado
Sirva de ensinamento
Na luta do injustiçado
Sempre surge um bom momento